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  • Foto do escritorMaria Silvana Alves

ÀS MÃOS QUE SE FAZEM PONTES!



Virtuosos que fazem grandes contribuições para a humanidade, não raro, tiveram vidas difíceis de muito esforço para superar grandes dificuldades. Não é incomum que tenham sido vistos com desdém e tratados com rudeza quando crianças, adolescentes e jovens. Raramente cresceram em um mundo cor de rosa de apoio e admiração. Frequentemente tiveram de enfrentar descrença, tensão, fracasso, rejeição, vergonha, humilhação em suficiente medida para movê-los a um doloroso esforço no limite entre o desespero da ruína e o resvalar para a autodestruição na revolta contra o mundo e a vida, e a remota, difícil, tortuosa, ardentemente desejada, redenção por meio da dolorosa autossuperação.

Crianças com dificuldades e distúrbios estão quase sempre sob forte tensão. Se aumentarmos sua habilidade ao nível do virtuosismo, elas, mais que quaisquer outras, o doce Flow conhecerão. É por isso que Educação tem a ver com honra e heroísmo, senso de missão e redenção. Não se trata só de ensinar coisinhas, mas de estender a mão como ponte sobre o fosso do desespero, o braço honrado como ponte para o grande cruzar sobre o assustadoramente profundo e aparentemente intransponível vale das sombras da morte, rumo à remota, ansiada, impossível salvação.

Filhinhos e Filhinhas de Papai e de Mamãe, nascidos em "berço esplêndido", mimados desde sempre, e tratados a pão de ló, como elite que são, nos melhores colégios e depois nas melhores posições douradas de poder, jamais entenderão como a miséria e o desespero e o fracasso e a vergonha e a carência e a dor e a descrença e destituição subjazem como motor ao gozo da autossuperação e alimentam esse senso de honra e devoção e missão que inspira a vida dos melhores professores.

Se Anne Sullivan não tivesse sido abandonada num orfanato paupérrimo com o irmão tuberculoso, se não tivesse passado pelo desespero do desamparo da cegueira, incapaz de socorrer seu irmãozinho que faleceu em seus braços; se não tivesse experimentado o deserto da absoluta e desesperadora falta de amor, não teria se agarrado à missão de resgatar da morte das trevas e do nada a menina Helen Keller, a missão de salvar das trevas da morte para salvar-se do mesmo azar chamado, ironicamente, de "sorte".

Engomadinhas jamais saberão o que se passa na alma da professora heroína e dos "casos perdidos" de seus terrivelmente problemáticos aluninhos e aluninhas. Jamais entenderão como a Educação é, para incontáveis Professores e Alunos (Mestres e Discípulos), a única ponte sobre o assustador fosso escuro da morte, a única tábua de mútua salvação.

Singela homenagem ao passamento do psicólogo Mihaily que a todos a quem acordou para a leveza real do doce Flow. Sobre fenômenos e experiências e processos de alma que subjazem ao trabalho sacrificial de uma certa parte de bombeiros e professores e médicos e paramédicos e enfermeiros, trabalho exercido ao risco do conforto, da convivência com a família, a própria saúde, a própria vida. Nós, que fomos esses casos perdidos, compreendemos como, hoje, ao salvar nossos próprios pequeninos (tidos por quase todos como casos perdidos) somos, justamente por eles, nós mesmos, redimidos. Que burocratas não entendam, não valorizem essas crianças e o milagre que se passa todo dia na discreta santidade luminosa da sala de aulas não nos deixa surpreendidos. Colaborar amorosamente fazendo no oculto o Bem, longe dos holofotes da glória, parece ser o enredo comum a tanta honrada história. Paradoxalmente, esse amor secreto, mais que meramente discreto, esse amor mal amado, quase sempre ignorado, não reconhecido nem louvado, justamente por ser ignorado (como defesa de um mundo desconcertado para que não se sinta por ele envergonhado) acaba por colaborar para que sejamos redimidos.

Engomadinhos entediados franzirão testa e torcerão nariz, incapazes de compreender a misteriosa beatitude do semblante da professora humilde, agraciada e nobre que, a uma criança defeituosa e pobre, faz sorrir ao superar-se a si mesma, vitoriosa, agradecida, agraciada, estranhamente feliz. Flow, "peak experiences", pequeninos milagres que não fazem manchete, não fazem chover confete, não recebem as luzes da ribalta, não sobem do fundo escuro e frio dos bastidores ao palco, jamais entram em cena. O mundo os ignora como coisa pequena que não vale a pena. Cônjuges e pais e irmãos e amigos perguntam: "Trabalhar tanto assim, se esforçar e se doar sem limite, por meses e anos e décadas a fio, tanto assim... a ponto de se machucar e se gastar e adoecer e envelhecer e se quebrar... tanto assim... e ver a vida passar... tanto assim... Vale a pena?" Pergunte a Anchieta, a bombeiros e professores e médicos e paramédicos e enfermeiros que, como Fernando Pessoa, dirão que vale a pena a todo aquele cuja alma não é pequena. Sim, vale muito cada um de todos os sofridos momentos de pena.

Assim como a flor de lótus emerge do lodo, também o sorriso de beatitude do flow emerge do sentido vivido, vívido e transcendente, de modo surpreendente, em meio ao caos aparente e às dificuldades prementes. O mundo se queda desconcertado e mudo. Incapaz de compreender, vivenciar, explicar e compartilhar, desconfortável diante desses que só fazem por abençoar. Por que é que insistem nesse estranho "só abençoar"? Por que é que nunca se dão a odiar mesmo quando provocados? Por que é que recusam a se entregar ao prazer de participar da malhação do último Judas, ao linchamento moral do último bode expiatório, ao cacoete da moda que é o recíproco desfigurar da face um do outro no jogo perdido do amaldiçoar? Por que é que qualquer um deles, mesmo instado e provocado e constrangido e obrigado a vociferar com vingativa ferocidade insiste em sorrir com essa estranha serenidade, a calar e a permanecer mudo? Por qual outra razão? Que outra razão senão a de que finalmente depois de tanto sofrer conseguiram chegar a compreender os reais porquês de tudo. Possa o espírito deste texto ressoar em corações nobres e ajudar pessoas a estender as mãos e braços fortes para resgatar quem precisa de ajuda. Inspirados pelo poeta compositor, possamos assim nos inspirar e convidar uns aos outros (daqueles que sentem esse chamamento interior): Like a bridge over troubled waters, let us lay us down.


(Capovilla, F.)


 

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