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  • Foto do escritorMaria Silvana Alves

"À PROCURA DO MEU JEITO DISLÉXICO DE SER!!!"


Acompanharemos a seguir, o depoimento de Josiane Gomes de Souza, que descobriu a dislexia há dois anos e meio, aos 47 anos. Uma história de obstáculos, desafios, porém de conquistas e superações.

Hoje ela tem uma família linda: dois filhos, um de 28 anos que já lhe deu uma neta; e uma menina de 13 que, atualmente, é quem lhe ajuda nas tarefas da faculdade e no estudo de conteúdos para concursos, fazendo as leituras dos textos e enviando-lhe via celular. Josiane relata que percebe que a filha desenvolve essa atividade com dedicação e prazer! Talvez ela não tenha noção de como essa ajuda é fundamental para sua mãe!!! Josiane disse também que nenhum dos dois filhos apresenta a dislexia.


No vídeo a seguir, faço a leitura do depoimento de Josiane Gomes de Souza (foto acima).



Abaixo, o depoimento relatado por Josiane em forma de áudios e redigidos por mim, com muito carinho!


“Meu nome é Josiane, tenho 49 anos, e há dois anos e meio descobri que eu era disléxica. Sou a caçula de uma família de sete filhos, da qual, minha mãe também é disléxica; a maioria dos meus irmãos, também são disléxicos. Um deles estudou comigo e nunca conseguiu passar do terceiro ano. Ele é seis anos mais velho do que eu. Não sabia ler e, na década de 70, apanhou muito da professora com a régua, porque não conseguia aprender a ler. Eu não dizia à minha mãe, porque tinha medo de que ela me tirasse da escola, e também porque eu gostava da professora. Um dia ele chegou todo marcado em casa e não foi possível dizer que não era verdade o que ele dizia pra minha mãe. Para eu me alfabetizar, demorei muito e com uma leitura deficiente e uma caligrafia péssima, ortografia abaixo do esperado para minha idade. Todos os dias a minha professora pedia pra eu escrever no caderno DEVO MELHORAR MINHA CALIGRAFIA, de segunda a quinta, 150 vezes, e até hoje minha caligrafia é feia. Faço acompanhamento com equipe multidisciplinar e tenho melhorado muito, mas quando criança, às sextas na escola, eu ficava de castigo no milho devido à minha caligrafia e eu não podia recrear com meus amigos. Eu errava muito em ditados e sempre fui ruim na Língua Portuguesa, na gramática, na ortografia, na literatura, em tudo que envolvia essa área. Até nas disciplinas de decoreba (História, Geografia) eu não era muito fã. Agora discalculia eu não tenho. Eu era muito boa em Matemática assim como meu irmão (que estudava comigo) também era, as quatro operações ele fazia de cabeça. Ele sobressaía em Matemática e estudava muito para sempre mostrar que sabia mais do que a gente. O tempo foi passando e cheguei ao ginásio que hoje é o Ensino Fundamental II e quando eu cheguei na 5ª série (hoje chamada de 4º ano) eu consegui passar nas disciplinas, mas sempre em Língua Portuguesa ia mal. Eu tinha uma amiga que sempre ia muito bem em Língua Portuguesa, mas mal em Matemática. Assim a estratégia era trocar de provas: no dia da prova de Matemática eu fazia pra ela e na prova de Língua Portuguesa ela fazia pra mim. Eu sei que isso era errado, mas somente assim conseguia ser aprovada. Isso aconteceu até a 8ª série (hoje, 9º ano). Antigamente, só tinha Magistério Científico e Contabilidade (ao menos na minha cidade), então eu escolhi a dedo o que fosse mais fácil pra eu aprender, e escolhi Magistério. Tive muita dificuldade, primeiro pela minha caligrafia que era horrível e segundo, pelos erros de ortografia que eram notórios. Me formei no nível médio e ingressei no técnico de Enfermagem, porque eu gostava muito da área. Lecionei por três anos e parei. Fiz o concurso em 93 no estado de Pernambuco e passei. Estudei muito nessa época. Fiz uso de várias estratégias que eram permitidas. Como não havia celular, eu gravava as aulas em gravadores onde eu registrava minhas leituras em voz alta. Era muito ruim, pois minha leitura era silábica e com muitos erros e mesmo assim, consegui passar no concurso e estou há 26 anos trabalhando como técnica de enfermagem no hospital geral de Pernambuco. Com o passar do tempo, não quis mais estudar, não era minha praia, achava uma dificuldade muito grande, um desafio muito grande voltar a estudar. Me casei e tive filho. Me separei e fui para o segundo casamento e esse meu marido é muito inteligente e perfeccionista. A cada palavra errada que eu dizia, ele me corrigia de uma maneira que me magoava, apesar de ele não aceitar isso. Na verdade, isso acabou me motivando a voltar a estudar e eu fiz a minha primeira graduação com todas as minhas dificuldades. Só quem é disléxico sabe como é difícil: a gente vai pra aula e prestava muita atenção nos professores. Interessante que na hora, eu respondia, mas no outro dia, parecia que tinha passado um apagador na minha mente, eu me esquecia de tudo que havia estudado no dia anterior. Comecei a mudar minha estratégia de estudo. Passei a pegar o conteúdo estudado na aula e jogar no youtube. Comecei a assistir às vídeoaulas e assim, consegui assimilar melhor os conteúdos. Às vezes, as notas eram boas; e em outras, apenas o suficiente para passar.

Me formei em Gestão Hospitalar, um curso a curto prazo. Eu tinha muita raiva de estudar, devido à leitura. Hoje, eu melhorei muito essa atividade. Posso dizer que melhorei uns 70% em relação ao que eu era. Mesmo assim, muitas vezes leio e não entendo. Passado um tempo, fiz uma pós em Gestão Hospitalar e em Gestão em Saúde, o MBA na FCAP (Faculdade Estadual de Pernambuco). Nessa especialização, me deparei com uma turma elitizada e com um grau de cultura muito elevado. Nessa pós, percebi a segregação dos alunos e a indiferença comigo e com mais cinco pessoas da turma, que apresentavam os problemas semelhantes aos meus. Praticamente, fomos excluídos do grupo. Ao término do curso, só restamos eu e outra pessoa. As demais, desistiram. Eu coloquei na minha cabeça que iria vencer, que ninguém iria me tirar a honra de concluir o curso; de que os mesmos direitos que eles tinham eu também tinha. Eu estava pagando igual a eles, e se eu estava no curso, na mesma turma deles, é porque era competente sim. Fui a primeira a concluir o curso, devido ao TCC, porque quando eles estavam começando o TCC, o meu já estava sendo encadernado. Meu primeiro TCC (primeira especialização) admito que não ficou bom, mas a gestora da faculdade me ajudou muito e me deu um 10 devido à observação em relação ao meu esforço e dedicação no desenvolvimento do material. Antes de terminar a pós, vi o Programa Educa Mais. Ganhei uma bolsa de 30% e escolhi o curso de Serviço Social, por me identificar com a classe, com a categoria e fui com toda força. Como no Serviço Social é preciso ler muito, eu apresentei muita dificuldade. Eu usava muito o youtube, e as vídeoaulas da própria faculdade. Posso dizer que o conhecimento que construí foi devido aos vídeos e não às leituras. Hoje sou formada como assistente social e também pós-graduada em Auditoria de Saúde, o qual fiz a distância na própria Unopar. O curso não foi tão difícil, mas encontrei dificuldades em algumas cadeiras. Eu gosto muito da parte administrativa também, talvez por isso tenha me dado tão bem auditoria. Na metade do curso de Serviço Social, eu ingressei em outra faculdade de Enfermagem. Eu estava no 5º período de Serviço Social, quando decidi fazer outro curso. Foi uma loucura! Eram dois cursos em andamento. Eu ia às terças e sextas nas aulas de Serviço Social e de segunda a quinta, no curso de Enfermagem. Na sexta era laboratório. Eu comecei a “queimar” as aulas de terça de Serviço Social e as de laboratório de Enfermagem às sextas, para que eu pudesse suprir 50% do Curso de Serviço Social e 80% do curso de Enfermagem. Fui levando até conseguir outro horário para as aulas de laboratório e terminei todas as cadeiras de Enfermagem e as de Serviço Social. Só consegui porque a faculdade me deixou assistir às aulas de terça-feira online. Foi assim que consegui avançar nos dois cursos. Ainda estou concluindo o curso de Enfermagem. Me lembro de que quando ingressei na Enfermagem, percebi uma dificuldade extrema em acompanhar o ritmo de meus colegas. Uns me diziam que só estudavam entre 30 a 40 minutos por dia e eu tinha que estudar umas 6 horas por dia para aprender o conteúdo. Isso me incomodava muito! Apesar disso, ainda não tive nenhuma atitude em buscar saber o que de fato acontecia comigo. Na época, resolvi fazer um cursilho e ganhei um CD com 100 hinos. Saí radiante do cursilho e escutei aquele CD durante 3 meses, todos os dias, mas não consegui decorar nenhuma letra de música. Isto me incomodava muito também. Minha desorganização e falta de atenção incomodava meu marido e ele me chamava a atenção. Às vezes, iniciávamos uma conversa e eu saía do local deixando ele sozinho. E ele ficava com raiva dizendo que eu não prestava atenção nele. Comecei a perceber esses e outros comportamentos meus e também a constância com que aconteciam. Comecei então a buscar mais informações sobre o assunto na internet. Eu pensava “ou eu sou muito burra, ou estou ficando louca.” Uma pessoa que não consegue cantar uma letra de música; troca palavras ao dizer determinadas frases, palavras às vezes sem relação nenhuma, antagônicas. Achava até engraçado! Foi assim que, numa busca, me deparei com a palavra Dislexia e não conseguia compreender o conceito. Coloquei na internet a pergunta “O que é ser disléxico?” e encontrei toda a descrição da patologia. Hoje tenho a certeza de que tenho esse transtorno. Agradeço muito ao papai do céu por ser disléxica. Quem é disléxico, saberia, assim como eu, dizer as dificuldades que a gente enfrenta, mas no dia em que recebemos o laudo do transtorno, posso afirmar com todas as letras, que a sensação é muito boa. É como se renascêssemos das sombras, das cinzas, afinal, somos taxados de burros constantemente! Tanto que cheguei a pensar que realmente era. Se hoje eu descobri que sou disléxica, posso dizer que é um motivo de alegria para mim. Sei que apresento um transtorno, mas luto diariamente para melhorar, superar minhas dificuldades, me adequar e me dar uma qualidade de vida melhor. Sei que tenho que entender muito ainda sobre esse mundo! Passamos a entender toda a dificuldade de leitura e escrita que apresentamos. A dificuldade em copiar um texto da lousa... eu, por exemplo, nunca copiei um texto sem cometer erros. Nunca fiz uma redação “limpa” . Minha letra era muito feia. Sempre surgia um borrão, três ou quatro palavras erradas... eu tentava corrigir, mas não conseguia. Escrevia uma mesma frase várias vezes, até na mesma linha, e não percebia. A dificuldade de coordenação motora fina também era muito evidente. Eu pinto muito bem, mas os detalhes são grosseiros. Mas o que mais me aborrece mesmo é ouvir das pessoas que sou muito desorganizada. Chego sempre atrasada aos locais. Amanhã mesmo vou fazer um concurso e comecei a gravar esses áudios. Me envolvi com essa atividade e me esqueci de voltar a estudar para o concurso. Me lembro de que, quando me deparei com o nome Dislexia, busquei a neurologista que fez uma série de testes e exames a fim de descartar qualquer outro tipo de problema. Ela me encaminhou para a fonoaudióloga e a psicóloga. Em minhas buscas, encontrei o CEFOP, um centro de atendimento que oferece um trabalho multidisciplinar. Faz dois anos que faço esse tratamento. Minha psicóloga, foca as terapias na questão emocional e comportamental, principalmente a ansiedade. Passei por quatro fonoaudiólogas e cada uma delas com uma abordagem diferente, porém esses acompanhamentos vieram somar com melhorias na minha qualidade de vida. Hoje, passo com a Doutora Karina. Percebo que a minha maior dificuldade ainda é na leitura e na interpretação de texto. A Karina faz a leitura dos textos para mim, mas eu não consigo compreender com totalidade o conteúdo lido. Retornei recentemente à neurologista e ela me encaminhou também para outra especialidade: a Terapeuta Ocupacional. Essa profissional caiu como uma luva, porque ela tem formação em Pedagogia. Ela começou a perceber algo estranho em mim. Interessante que quando comecei a falar com a psicopedagoga Maria Silvana, ela percebeu alguns sinais de TDAH, com perfil desatento. Decidi comentar na última terapia com minha TO sobre o transtorno e ela me apresentou seus relatos das sessões, no qual menciona a necessidade de investigar o TDAH. Acredito que a TO surgiu na minha vida para me ajudar a entender certos aspectos que apresento, assim como a Maria Silvana me ajuda muito a me entender, a me compreender. Estou procurando o meu jeito disléxico de ser, ainda estou em busca dele. É uma batalha grande, com vários desafios, pois estão surgindo vários concursos e eu, devido ao transtorno, não consigo concluir as provas. É fato de que na década de 90, prestei um concurso e passei, mas os concursos de hoje, no nível em que se apresentam, não consigo finalizar. Outra avaliação que prestei foi o Enem em 2014, mas só consegui fazer 50% das questões, para não ter ponto de corte. Me lembro de que me preparei muito para a prova de redação e mesmo tendo entregue a minha com uma letra muito feia, com três ou quatro palavras borradas, uma repetição de uma frase, palavras faltando sílabas e letras, enfim, mesmo assim, ainda tirei 720. Assim consegui uma média de 575 e considerei muito boa a minha participação. Também não tive tempo adicional para fazer a prova, uma vez que ainda não sabia que era disléxica. Soube desses direitos só depois que iniciei o tratamento com minhas terapeutas. Hoje, sou muito feliz em ser disléxica, em saber da minha patologia. Ainda me aborreço com minhas dificuldades e com a ansiedade que aumenta diante dessas dificuldades. Às vezes, preciso me medicar para controlar esse quadro comportamental. Choro muito, fico muito depressiva, enfim. Acredito que, se minha equipe multidisciplinar identificar o TDAH e me prescrever uma medicação que possa agir no ponto da atenção e da concentração, tenho certeza de que vou melhorar a minha qualidade de vida. Ao descobrir o transtorno e recordar das infinitas dificuldades pelas quais passei ( e ainda passo), pelos impropérios que ouvi, do tipo “você precisa voltar ao jardim da infância para poder ganhar ritmo na cópia”; pelo que passei na pós quando senti a rejeição e a segregação do grupo devido às minhas dificuldades e “a falta de cultura”; em lembrar do ecoar de frases do tipo “não era nem pra você estar aqui” , me considero uma vencedora. Essas frases me machucavam muito, é claro, porque eu não conseguia entender os meus resultados, uma vez que eu tinha muita vontade de aprender e me dedicava para isso. E sei que essa vontade me fez ir buscar quem eu era, o que realmente eu tinha. Quando você, enfim, descobre que o problema não está relacionado à inteligência, mas sim à patologia, você entende que não é burra, mas sim muito inteligente. Acho que sou muito inteligente! Preciso me conhecer melhor a cada dia para superar, principalmente o medo, porque eu não consigo ainda fazer um bom seminário (que é o meu maior sonho), com muita qualidade. Tenho uma boa oratória, mas a leitura não. Nos trabalhos acadêmicos, desenvolvo as atividades propostas em Power Point, dentro das normas da ABNT, porque isso me ajuda muito. Uso isso, na verdade, como estratégia para aprender, mesmo ouvindo que as pessoas se aproveitam de mim. Eu quero e desejo ser melhor do que eu sou, pois tenho consciência de que ainda falta muito para eu realizar o sonho de realizar um bom seminário, e até mesmo de me aproximar o meu comportamento do comportamento de outras pessoas, no que se refere à atenção e organização. Às vezes, quando saio com meu marido, por medo de dizer algo desconexo, fico em silêncio e só falo quando tenho realmente certeza daquilo que vou dizer. Faço isso porque eu não desafio minhas limitações. E quando li e escutei o poema do D’ Mello que descobriu a dislexia aos 28 anos, posso dizer que eu nasci aos 47 anos de idade e foi um nascimento tão lindo que eu não me esqueço do momento em que me deparei com a palavra DISLEXIA e seu significado. Hoje eu tenho orgulho, sim, de dizer EU SOU DISLÉXICA, EU SOU DISLÉXICA, mas eu tenho qualificações e me esforcei muito para conseguir ultrapassar as inúmeras barreiras que foram colocadas na minha vida e as barreiras que ainda precisam ser superadas, vão ser quebradas, todas, uma a uma, e eu vou conseguir enxergar e chegar no meu jeito disléxico de ser e ser muito mais feliz do que já sou. Muito obrigada, Maria Silvana, pela oportunidade de compartilhar minha história de vida!


 

Josiane, você é um exemplo para todos os disléxicos, pois muitos desistem de sua vida acadêmica devido aos empecilhos que surgem neste processo, além das dificuldades que o próprio transtorno oferece. Sinto muito orgulho de você!!! Tenho certeza de que sua história servirá de inspiração para muitas outras pessoas! Não me canso de te dizer "Parabéns" por ter acreditado em você e no seu potencial!

 

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